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O que o corpo nos diz sobre nossa saúde mental?

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    Fernanda Passoni
  • 23 de jul.
  • 8 min de leitura
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Autor: Gustavo Diez

Tradução: Fernanda Passoni


Tradicionalmente, quando pensamos em emoções ou transtornos afetivos como a ansiedade ou a depressão, tendemos a direcionar nossa atenção a regiões cerebrais como a amígdala ou o hipocampo. No entanto, nos últimos anos, tornou-se evidente que o panorama é muito mais complexo. Estávamos esquecendo de algo essencial: a informação que provém do próprio corpo. A forma como o cérebro interpreta os sinais das nossas vísceras (viscerocepção), ou de músculos e tendões (propriocepção), desempenha um papel fundamental no nosso bem-estar psicológico. Todo esse fluxo de informação que chega do interior do corpo ao cérebro é integrado, segundo um interessante artigo de revisão de Krieger e Skibicka, sob o conceito de interocepção.


A interocepção é a capacidade de perceber e processar os sinais internos do corpo — fome, ritmo cardíaco, tensão visceral, entre outros. Esses sinais chegam ao cérebro por vias hormonais e neuronais. Embora os autores equiparem interocepção à consciência corporal, outras pesquisadoras como Lisa Feldman Barrett — e a maioria dos fisiologistas — argumentam que não são a mesma coisa. A interocepção é o fluxo contínuo de informação que o cérebro recebe e processa; a consciência corporal é apenas uma pequena porção desse fluxo — a parte que se torna experiência subjetiva: sentir cansaço, fome ou inchaço depois de comer demais.

Já no início do século XX, teorias fisiológicas da emoção postulavam que aquilo que sentimos fisicamente não é apenas consequência de uma emoção, mas parte essencial de sua criação — e até mesmo seu principal motor. Isso faz muito sentido, pois, no fim das contas, as emoções são respostas adaptativas às demandas do corpo. Por exemplo, se você está com uma inflamação aguda ou uma infecção viral, é normal que o corpo gere emoções que o levem a preservar sua energia de alguma forma. Você vai querer ficar de cama, minimizar as interações sociais e terá menos motivação para realizar suas tarefas cotidianas. Esse fenômeno é conhecido como “comportamento de doença”. Na mesma linha de raciocínio, os autores propõem que um coração acelerado não seria apenas consequência da ansiedade, mas também sua origem — ou pelo menos um amplificador da emoção. E se existisse um substrato interoceptivo nos transtornos afetivos?


Pessoas com transtornos emocionais frequentemente mostram uma percepção alterada do seu mundo interoceptivo. Quem sofre de ansiedade, por exemplo, costuma relatar uma consciência muito aguçada dos sinais corporais — e, além disso, essa percepção pode estar distorcida: um aumento do ritmo cardíaco após o exercício físico pode ser interpretado erroneamente como o início de um ataque de pânico. Por outro lado, em pessoas com depressão, observa-se uma menor precisão na detecção desses mesmos sinais internos — como se o “volume” do seu sentido interno estivesse diminuído.


Existe uma grande via de comunicação entre os órgãos e o cérebro: o nervo vago. O nervo vago é uma das principais rotas de comunicação entre os órgãos internos, como intestino ou fígado, e o cérebro. Ele faz parte do sistema nervoso autônomo, que regula funções corporais involuntárias. Especificamente, pertence ao sistema parassimpático, o qual é ativado em estados de descanso e relaxamento. Quando o nervo vago entra em ação, reduz a frequência cardíaca e ajusta a respiração por meio de centros nervosos no bulbo raquidiano. Também permite que o coração varie seu ritmo com mais facilidade — o que chamamos de variabilidade da frequência cardíaca.


Mas a maioria das fibras do nervo vago não são eferentes (ou seja, não enviam comandos do cérebro para o corpo), e sim aferentes — ou seja, recolhem informações dos órgãos e as enviam ao cérebro. De fato, seu nome, "vago" (do latim vagari, que significa vaguear ou deambular), reflete como esse nervo “viaja” pelo corpo. Ele atua como um grande rio que recolhe águas de múltiplos afluentes — as informações dos diferentes órgãos — e as conduz até os centros de processamento no cérebro.


O nervo vago e a ansiedade


Alguns estudos com ratos mostram um resultado sugestivo: quando as vias sensoriais do nervo vago que sobem do abdômen ao cérebro são cortadas (o que se chama de desaferentação vagal subdiafragmática), a ansiedade dos animais diminui. Curiosamente, estimular eletricamente o nervo vago esquerdo também reduz a ansiedade — não só em ratos, mas também em humanos. Como pode a inibição e a estimulação do nervo vago produzirem efeitos semelhantes na ansiedade?


Essa aparente contradição tem uma explicação. Por um lado, quando se interrompe a via de sinalização interoceptiva que transmite informações do corpo ao cérebro, o sistema nervoso central deixa de receber notícias sobre as mudanças fisiológicas internas. Em modelos animais, essa desconexão produz um curioso efeito do tipo “sem notícias, boas notícias”: a ausência de sinais corporais parece ser interpretada como ausência de ameaça. Como resultado, os ratos apresentam uma redução significativa nos níveis de ansiedade.


Por outro lado, a estimulação do nervo vago é uma técnica neuromoduladora que consiste em ativar eletricamente esse nervo para influenciar funções cerebrais e viscerais. Ela pode ser feita de maneira invasiva, com implante cirúrgico, ou de forma não invasiva, usando dispositivos que estimulam áreas acessíveis como a orelha ou o pescoço.


Acredita-se que essa estimulação atue principalmente sobre os sinais que descem do cérebro para o corpo. Especificamente, ao ativar suas fibras eferentes (motoras), reduz-se a frequência cardíaca e o ritmo respiratório, entre outros muitos efeitos que compõem uma resposta de relaxamento mediada pelo aumento do tônus parassimpático.


Uma prova-chave de que o efeito ansiolítico da estimulação vagal se deve principalmente às fibras eferentes é o fato de que, quando elas são bloqueadas quimicamente, a estimulação elétrica perde sua eficácia. Isso foi demonstrado com o uso de antagonistas muscarínicos, que impedem a ação da acetilcolina — o principal neurotransmissor parassimpático — nos tecidos periféricos. Sem essa ação colinérgica, o vago deixa de exercer sua influência calmante sobre órgãos como o coração e os pulmões, e com isso desaparece o efeito tranquilizante da estimulação.


Estimulação natural do nervo vago


Em humanos, também foram identificadas formas de estimular o nervo vago que não requerem eletricidade — ou seja, técnicas “à prova de blecautes”. Entre as mais usadas estão:


  • técnicas de relaxamento profundo,

  • respiração lenta e diafragmática,

  • algumas práticas de mindfulness centradas no corpo,

  • e banhos de água fria.


Todas essas práticas ativam o nervo vago indiretamente, promovendo aumento do tônus parassimpático e regulando assim o estado emocional.


O fato de que os estados emocionais possam ser modulados tanto por estimulação quanto por inibição do nervo vago nos leva a repensar o papel fundamental que esse nervo desempenha na origem e regulação das emoções.


As emoções acontecem no corpo


Hsueh e colaboradores utilizaram um marcapasso optogenético para controlar a frequência cardíaca de ratos em movimento livre. Descobriram que induzir taquicardia — ou seja, acelerar artificialmente os batimentos — aumentava significativamente o comportamento ansioso.


Contudo, esse efeito não é universal. Em condições normais, um coração acelerado só intensifica a sensação de ameaça se houver perigo real no ambiente. O sinal interoceptivo (taquicardia) age então como amplificador de um sinal exteroceptivo (como a presença de um predador). Por outro lado, se o aumento dos batimentos vier de exercício físico, a resposta ansiosa não se ativa. Um coração que bate rápido sugere perigo quando vemos um urso, mas não quando estamos correndo. Esse mecanismo de integração entre sinais corporais e contextuais pode estar desorganizado em pessoas com ansiedade ou depressão.


O estado metabólico também modula a resposta emocional. Um rato com fome, por exemplo, mostra menos ansiedade diante de um predador. Essa “imprudência” tem lógica evolutiva: a urgência de conseguir alimento se sobrepõe, temporariamente, à cautela. O animal se arrisca mais, aumentando suas chances de sobrevivência. Essa ousadia não é aleatória: é regulada por sinais do trato gastrointestinal enviados ao cérebro pelas fibras sensoriais do nervo vago, que ajustam o comportamento conforme o estado nutricional. Quando o animal está saciado, o equilíbrio se inverte: a prioridade volta a ser a autoproteção e o comportamento de evitação reaparece.


Esse mecanismo não é exclusivo dos roedores. Em humanos, também foram observados efeitos ansiolíticos associados ao jejum ou à restrição calórica, sugerindo que essa antiga aliança entre fome e ousadia evolutiva ainda existe em nossa espécie.


Interocepção e saúde mental


As fibras aferentes vagais permitem ajustar nossas emoções com base no estado interno do corpo, ativando ou inibindo comportamentos de exploração ou evitação. Tudo isso nos leva a uma ideia poderosa:

O equilíbrio emocional não depende apenas dos pensamentos — também depende de como sentimos o corpo por dentro.

A interconexão entre corpo e mente torna-se ainda mais evidente ao observar condições médicas que afetam diretamente esses canais de comunicação interna. A síndrome do intestino irritável, por exemplo, interfere nos sinais interoceptivos do sistema digestivo. Estima-se que entre 25% e 35% das pessoas com essa síndrome também apresentem critérios diagnósticos para ansiedade ou depressão. Essa alta comorbidade sublinha a profunda interdependência entre o bem-estar mental e a “orquestra” — ou, por vezes, a cacofonia — de sinais fisiológicos vindos das vísceras.


Do mesmo modo, distúrbios metabólicos como a obesidade ou a doença hepática gordurosa não alcoólica também apresentam taxas elevadas de comorbidade psiquiátrica.


Restaurar a interocepção é tão importante quanto mudar os pensamentos?


A disfunção no sistema de interocepção pode ser um fator de risco-chave em transtornos como a ansiedade ou a depressão. Isso sugere que restaurar ou reorganizar esse sistema pode abrir novas estratégias terapêuticas para os transtornos afetivos.


Em doenças como as gastrointestinais, cardiovasculares ou metabólicas — já associadas a problemas emocionais — a sensibilidade do nervo vago pode estar aumentada ou diminuída. Em ambos os casos, o resultado é o mesmo: o cérebro recebe sinais confusos sobre o estado do corpo, como se ouvisse um canal cheio de estática. Esse "ruído" afeta a capacidade do cérebro de atualizar seu “mapa interno” do corpo. Modelos atuais sugerem que, quando há um descompasso entre o que o cérebro espera sentir e o que de fato recebe, ele tende a confiar mais nas suas crenças anteriores. Se essas crenças forem desadaptativas — como geralmente ocorre em transtornos emocionais —, elas dominam a percepção interna e empurram a experiência para a ansiedade ou depressão.


Algumas práticas podem ajudar a reorganizar essa relação corpo-cérebro. O mindfulness, por exemplo — especialmente quando centrado na respiração ou na atenção ao corpo — melhora a sinalização vagal e, com isso, a regulação emocional. A chave está na aceitação. Para quem começa a praticar mindfulness, ficar quieto e sentir o corpo pode ser desagradável, especialmente se há estresse acumulado. Mas expor-se a essas sensações com uma atitude aberta e sem julgamento, em um ambiente seguro, pode mudar a forma como o cérebro as interpreta. Com o tempo, isso pode reduzir os sintomas de ansiedade ou depressão.


Há também outras técnicas eficazes para estimular o nervo vago. Uma das mais poderosas é a respiração profunda e lenta, que ativa diretamente o sistema parassimpático. Ao contrário do mindfulness, que reorganiza a percepção via consciência, a respiração atua como a estimulação elétrica: muda o tom fisiológico do corpo — e, com ele, a emoção.


Mais do que tudo isso, uma maior consciência sobre o papel da interocepção na saúde mental pode transformar a psicoterapia. As terapias cognitivas podem incorporar mais atenção ao corpo, ajudando o paciente a reinterpretar sensações internas antes vistas como ameaçadoras. Até mesmo intervenções básicas — como melhorar a alimentação ou usar probióticos — devem ser integradas no enfoque terapêutico.

O equilíbrio emocional não depende apenas do que pensamos.Depende também de como sentimos o corpo por dentro.

Referências:


Krieger JP, Skibicka KP. From Physiology to Psychiatry: Key role of vagal interoceptive pathways in emotional control. Biol Psychiatry [Internet]. 2025 Apr 24; Available from: http://dx.doi.org/10.1016/j.biopsych.2025.04.012



Hsueh B, Chen R, Jo Y, Tang D, Raffiee M, Kim YS, et al. Cardiogenic control of affective behavioural state. Nature [Internet]. 2023 Mar 1 [cited 2025 May 15];615(7951):292–9. Available from: http://dx.doi.org/10.1038/s41586-023-05748-8


Schulkin J, Sterling P. Allostasis: A Brain-Centered, Predictive Mode of Physiological Regulation. Trends Neurosci [Internet]. 2019 Oct;42(10):740–52. Available from: http://dx.doi.org/10.1016/j.tins.2019.07.010


 
 
 

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