Será que estamos entendendo o autocuidado de forma errada?
- Fernanda Passoni

- 18 de out.
- 5 min de leitura
O verdadeiro autocuidado nos ajuda a lidar com o estresse de maneiras saudáveis — mas algumas coisas às quais recorremos em busca de conforto não cumprem esse papel.
Por Shanna B. Tiayon | 13 de outubro de 2025
Tradução: Fernanda Passoni

O que é autocuidado?
Antes de pensar na sua resposta, deixe-me esclarecer: estou perguntando o que é autocuidado — e não como você cuida de si. É impressionante como um setor inteiro foi construído em torno do autocuidado, mas, pelo que vejo, poucos realmente tentam definir o termo.Então, qual é a sua resposta?
Se a sua resposta incluiu algo como exercício, contato com a natureza ou estabelecer limites, você acabou de citar maneiras de praticar o autocuidado — e o que todas elas têm em comum é que nos ajudam a lidar com o estresse, tanto de forma reativa quanto proativa, de maneiras saudáveis. Na base de tudo, o autocuidado é uma questão de gerenciamento do estresse.
É compreensível se você nunca pensou em autocuidado dessa forma, já que o termo se distanciou bastante de suas origens. O conceito tem raízes clínicas, baseado inicialmente na ideia de que as pessoas podem participar ativamente do manejo de sua recuperação por meio de práticas e comportamentos voltados à saúde.
Nas décadas de 1960 e 1970, o autocuidado passou a ser usado por ativistas de justiça social como uma ferramenta para cuidar de si em meio à militância. Já nos anos 1980, o termo começou a aparecer em contextos corporativos, como um antídoto ao esgotamento profissional (tema que abordo no meu artigo “O autocuidado não pode resolver o burnout dos funcionários”). Como argumento lá, estruturas de trabalho ruins são fontes de estresse que nenhum autocuidado é capaz de eliminar. Ainda assim, o autocuidado eficaz pode nos ajudar a responder a doenças e a nos sustentar quando enfrentamos injustiças e outros tipos de estresse.
Infelizmente, hoje o termo “autocuidado” foi cooptado e transformado em produto, sendo usado para se referir a tudo — de bolsas de luxo a maratonas de séries na Netflix. Quando o autocuidado passa a ser qualquer coisa, perdemos a capacidade de utilizá-lo de forma eficaz como uma ferramenta de bem-estar. Assim, muitos de nós o praticamos de maneira equivocada, envolvendo-nos em atividades que, sob o rótulo de autocuidado, apenas distraem momentaneamente do estresse.
Defendo que o autocuidado eficaz deve oferecer benefícios fisiológicos e psicológicos.
Os benefícios fisiológicos correspondem às funções biológicas e físicas do corpo.
Os psicológicos, à mente, aos pensamentos e às emoções.
Mas como diferenciar as práticas de autocuidado realmente eficazes das atividades que, no máximo, são meras distrações?
A conexão mente-corpo e o estresse
Primeiro, vamos entender a ciência por trás do critério de benefício mente-corpo no autocuidado eficaz.Você já se perguntou por que, ao ficar ansioso antes de uma apresentação, o estômago fica embrulhado? Ou por que o pescoço, os ombros ou as costas ficam tensos em períodos estressantes? Ou ainda por que, quando há problemas gastrointestinais, o humor piora e a concentração diminui?
Quando percebemos algo como estressante, isso aciona uma resposta hormonal (epinefrina/adrenalina, norepinefrina e cortisol) que afeta o corpo fisicamente — como o aumento da frequência cardíaca e da contração muscular.
Há também o papel do nervo vago, que se origina na base do cérebro e se estende até o coração, pulmões e intestinos — ele é a encarnação da conexão mente-corpo. Essa comunicação acontece em ambas as direções:
do cérebro para o corpo (por isso sentimos “borboletas no estômago” ao encarar uma ameaça), e
do corpo para o cérebro (por isso, quando o intestino está irritado, o humor tende a cair).
Essa comunicação se mede por algo chamado tônus vagal — quanto mais ativo o nervo vago, maiores os benefícios à saúde e ao bem-estar. Maior atividade vagal está associada a melhor saúde cardiovascular; menor atividade, à depressão.
O nervo vago é o principal componente do sistema nervoso parassimpático, responsável por frear nossa resposta ao estresse. É a “rodovia” que direciona nossos esforços de autocuidado. Por isso, o autocuidado eficaz precisa envolver tanto componentes fisiológicos quanto psicológicos.
Testando algumas práticas de “autocuidado”
Agora que temos uma visão mais clara, vejamos algumas práticas populares para descobrir se são autocuidado real ou apenas distração.
Exercício físico: autocuidado ou distração?
Definição: atividade física planejada, estruturada ou repetitiva, com o objetivo de melhorar o condicionamento físico.
➡️ Veredito: autocuidado real. Caminhar, correr, pedalar, remar — todas essas formas podem oferecer benefícios fisiológicos e psicológicos.
Fisiológico: o exercício, apesar de ser um tipo de estresse, ajuda a modular nossa resposta hormonal. Após o treino, os níveis de cortisol e adrenalina caem e, com o tempo, o corpo aprende a reagir de forma mais equilibrada a outros tipos de estresse.
Psicológico: melhora o humor, promove sensação de realização e libera endorfina e endocanabinoides — compostos que atravessam a barreira hematoencefálica e contribuem para o bem-estar e até aquela “euforia pós-exercício”.
Maratonar séries: autocuidado ou distração?
Definição: assistir várias horas de TV ou filmes de uma só vez.
➡️ Veredito: distração — e uma das mais comuns.
Fisiológico: favorece o sedentarismo e reduz a função cognitiva; praticamente não traz benefícios físicos.
Psicológico: ativa o sistema de recompensa do cérebro e libera dopamina, gerando prazer temporário e fuga da realidade. Porém, o excesso pode gerar mais estresse, especialmente por causa das responsabilidades negligenciadas durante a “maratona”.
Passar tempo com pessoas queridas: autocuidado ou distração?
Definição: conviver com amigos, familiares ou animais de estimação de quem gostamos.
➡️ Veredito: autocuidado real.
Fisiológico: promove a liberação de ocitocina, o “hormônio do amor”, que reduz o cortisol, a inflamação e a pressão arterial. Essa resposta é chamada de “tend and befriend” (cuidar e fazer laços) — um mecanismo evolutivo de proteção diante do estresse.
Psicológico: a ocitocina tem efeito calmante, e o apoio social ajuda a reinterpretar ou resolver estressores, diminuindo preocupação e ansiedade.
Beber álcool: autocuidado ou distração?
Definição: consumo de bebidas alcoólicas, de uma a várias doses.
➡️ Veredito: distração.
Fisiológico: não há benefícios comprovados; o álcool prejudica o cérebro, o equilíbrio hormonal e o sistema digestivo.
Psicológico: o álcool atravessa rapidamente a barreira hematoencefálica e promove relaxamento ao aumentar GABA, dopamina e serotonina — mas isso ocorre à custa de prejuízos à memória, foco e tomada de decisão. É um alívio químico temporário, que cobra um preço alto.
Exercícios respiratórios (breathwork): autocuidado ou distração?
Definição: técnicas estruturadas de respiração usadas com fins terapêuticos.
➡️ Veredito: autocuidado eficaz.
Fisiológico: controlar o ritmo da respiração — especialmente alongando a exalação — aumenta a atividade do nervo vago e reduz a frequência cardíaca, equilibrando o sistema nervoso.
Psicológico: a respiração lenta aumenta a atividade alfa no cérebro, promovendo foco, criatividade e calma. Com isso, a mente fica mais clara para lidar com os estressores.
Conclusão
Não devemos confundir mecanismos de enfrentamento com autocuidado.O autocuidado busca promover recuperação e restauração, enquanto as distrações apenas pausam o desconforto por um momento.
O autocuidado verdadeiro segue a regra do “não causar dano”, algo que distrações como maratonar séries ou beber não cumprem. Isso não significa que devamos eliminar todas as distrações — às vezes, um alívio momentâneo é necessário. Mas precisamos ser honestos conosco e não deixar que esses mecanismos substituam o autocuidado efetivo. É importante chamar cada coisa pelo seu verdadeiro nome.









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